domingo, 18 de janeiro de 2009

DOCUMENTÁRIO SAIBA AQUI SOBRE OS CINEASTAS DA VIDA REAL


Captar a Verdade… A tentativa de captação da realidade ou, como dito, da Verdade é uma constante no gênero documentário - ou sua essência ? - mesmo antes do mesmo ser cunhado assim. É por isso, por essa sua ânsia de Mundo que o documentário em muito se liga à idéia de educar, de esclarecer, e anda, muitas vezes, junto à política - presente tanto nas temáticas quanto, às vezes, nas formas acolhidas pelo filme documentário. É por essa ânsia de verdade também que muito se discutiu pela história cinematográfica se de fato existe o gênero documentário já que a possibilidade de retrato fiel da realidade é extremamente discutível, ou mesmo impossível … A discussão sobre o que seria a ficção e o documentário, os seus encontros e os seus desencontros é sempre um tanto acinzentada assim como os limites desses gêneros - ” Todo documentário é uma ficção e toda ficção é um documentário!”. E o leigo parece saber distinguir tão bem…

Na evolução do gênero tivemos grandes autores que penderam (quase que) apenas para preocupação na captação de uma realidade e também, grandes autores que se preocupavam em ser agentes da sociedade exatamente por estarem exprimindo - ou tentando - tais “verdades” ou tal realidade. Todos, essencialmente, perseguiram uma decifração do mundo… A captação dele acaba por ser a ilusão reconstruída e desconstruída na história do documentário… Nos dias de hoje, essa vontade de Verdade já é acompanhada pelo esclarecimento que o documentário vem sempre acompanhado da ficção e pela noção de que não existe a expressão de algo assim como é, simplesmente. E, é por isso, que hoje muitos documentários discutem exatamente o próprio gênero.

Robert Flaherty foi um dos grandes realizadores que se encaixam na primeira categoria preocupando-se em essencial com a expressão da realidade sem colocar-se como um agente social e sem problematizar a noção de documentário. O cineasta foi responsável por uma revolução no documentário que até então, resumia-se basicamente nas atualidades, nas cenas do dia-a-dia, nas paisagens, no registro de acontecimentos pontuais e nos travellogs. Ele realiza seu filme Nanook of the North em 1922, sobre uma comunidade de esquimós canadenses e, em especial, sobre a família de um Inuk do Ártico.

Importante aqui apontar que mesmo que o cineasta não coloque a questão do gênero - ficção versus documentário - ela entra em pauta de qualquer maneira. Isto ocorre porque Flaherty aglutina características próprias da narrativa ficcional, ou seja, o filme tem uma perspectiva dramática - com o trabalho da tensão, do suspense, etc… Pode-se dizer que os elementos dramáticos são extraídos do próprio ambiente: isto é, a caça, por exemplo, virara uma dinâmica social capaz de produzir uma tensão tal como numa ficção - não era, pois, apenas o relato, já era uma construção… Assim a busca pela essência através do verdadeiro meio ambiente (”locação”) e dos atores que encenam a si mesmos entrelaça-se com o universo ficcional por meio de seus mecanismos básicos de construção e elaboração.

O que sem dúvida nenhuma impõe também tal ligação é saber que Flaherty não apenas relatou ou captou dinâmicas que realmente aconteceram, mas também as encenou - a caça tal como foi mostrada no filme não era mais realizada pela comunidade, no entanto, o diretor acreditava que aquilo, de certo modo, contribuía para mostrar a essência desse povo, ou dessa cultura… Novamente, o limite de documentário e de ficção torna-se mais acinzentado já no inicio do gênero…

Juntamente à perspectiva dramática, à locação, aos atores sociais, às dinâmicas sociais, o cineasta trouxe um meio que hoje é marca do documentário, a pesquisa participativa, que consiste na convivência do cineasta com o universo que pretende retratar - um meio que trabalha para o realizador diminuir sua visão “estrangeira” em relação ao universo do objeto de filmagem, portanto, trabalha para diminuir o que seria uma visão “falsa”. Além disso, o cineasta aí já inicia sua “montagem” por escolha do que será captado ou não, portanto a “comunidade tal como ela é”, na verdade, não é simplesmente por não ter todas as suas atividades inteiramente mostradas…O que se vê é de escolha do realizador, é o que ele diz ser importante, é o que ele diz ser a essência.

Logo nos primórdios do gênero, assim, Flaherty já discute indiretamente os limites (ou não limites) dos gêneros, tenta exprimir ao máximo uma verdade (a realidade da comunidade Inuit) e não propõe uma ação política por meio do seu filme.

O cineasta trazendo novidades revolucionárias tem seu nome marcado na história do documentário e também na discussão de sua essência, no entanto, a afirmação institucional do gênero coube a John Grierson, quem , aliás, cunha o termo documentário e lança as bases do que se chama hoje de “documentário clássico”.

Em muito Grierson se inspirou em Flaherty: a pesquisa participativa, a locação, o ator social… Divergia bruscamente da tendência romântica e do neorousseanismo. Isto porque o realizador acreditava que deveria enfocar os documentários num personagem coletivo e em temas sociais mais próximos da realidade vivida - não no exótico, como em Nanook - também para ajudar a transpor os problemas da época… Aí, então, vê-se que o realizador não apenas preocupa-se com Verdade , mas com uma ação política e social, mesmo que conservadora…Encaixa-se na segunda categoria mencionada no inicio deste ensaio.

Grierson fundou a Escola Inglesa de documentário e trabalhou para o governo Inglês. O realizador é marcado por sua formação liberal e pelo conservadorismo social. Seu cinema tem um direcionamento ideológico e, conseqüentemente, um teor propagandístico. Ele acreditava no poder da educação através do cinema e que através dele as pessoas entenderiam seus lugares dentro do Império Britânico… Defendia, assim, o acesso à educação entre outras coisas - mas de maneira alguma a modificação da sociedade.

Precisa-se incluir aqui outro cineasta que juntamente a esses dois realizadores de peso forma a “trindade” dos primeiros passos do que se diz documentário. Alguém que é claro, como os outros, preocupa-se na decifração do Mundo e mesmo liga-se a proposta griersoniana quanto ao personagem coletivo, aos temas sociais e a um cinema político-social…Mas, alguém que queria o contrário de Grierson, Dziga Vertov.

Vertov faz parte da geração da Revolução Bolchevique e a crença no comunismo e na revolução proletária liga toda sua obra .O realizador acreditava que para um conteúdo revolucionário era necessário trabalhar uma forma também revolucionária visto que a forma antiga nascera num âmbito burguês, para ele havia apenas um cinema - “o CINE-OLHO”. Usava-se da locação (explorava-se o caos dessa realidade social e visual) e dos atores sociais assim como Flaherty e Grierson. Mas, além disso, destaca-se aqui a veia comunista, a reflexividade, a problematização do material através da montagem (a alma do cinema segundo o cineasta) e a falta de realismo (o qual era buscado pela cinematografia burguesa desde o inicio do cinema com Griffith)… Tudo trabalhava para decifrar-se o mundo, para a revelação do funcionamento da sociedade , porém por uma perspectiva comunista.

Flaherty, Grierson e Vertov assim, configuram os primórdios do documentário e estão invariavelmente presentes de um modo ou de outro nos dias de hoje. A história seguiu e suas teorias e obras se juntam e se separam mas vão formando o que hoje se tem como significado e/ou significados de documentário.

Seja como for, vale lembrar que ainda tiveram movimentos importantíssimos do gênero posteriores a tais grandes autores.

Com o tempo limitações técnicas para filmagem em externas foram transpostas: equipamentos que deixaram captar satisfatoriamente o som fora dos estúdios e também as câmeras mais leves e ágeis. E então, o documentário sofre mais uma reviravolta (ou aglutinação), agora, através dos denominados Cinema Direto e Cinema Verdade.

Os movimentos não trabalham diretamente política e/ou o social tal como Grierson ou Vertov até porque os movimentos aglutinam diversos realizadores e cada um tem uma visão particular do mundo - visão que por vezes pode não se interessar em conservar ou mudar o mundo, talvez apenas decifrá-lo ou olhá-lo o mais atentamente possível. Seja como for, é interessante ver que aí também temos uma desconstrução da ilusão de expressão da Verdade. Agora, ela é explicita pela mudança de postura do Cinema Verdade.

Toda a metamorfose na técnica e no meio intensifica a crença da possibilidade de captar-se, de fato (e mais uma vez) o real fielmente, captar-se a verdade - agora que era possível realmente filmar na rua e ter-se ainda o som direto…

O Cinema Direto,logo, é fruto deste momento - o som direto da externa é de extrema importância: conversas, discussões, simples diálogos, ruídos! O cineasta quer captar a verdade, a realidade e, então, se faz presente nas situações para abocanhá-las, mas não provocá-las - é claro, isso iria contra a ilusão da Verdade…

O Cinema Verdade, também fruto deste momento, inicialmente também se marcou pela ilusão de não intervenção na realidade e, consequentemente, de expressão dessa puramente. Posteriormente, tal ilusão é destruída e assume-se a ética ou o que foi chamado de elogio a reflexividade, já presente em Vertov - entende-se que já que era impossível a não intervenção do realizador dever-se-ia, então, mostrá-la, desnudá-la… Isto somado a crítica à encenação vai em sentido contrário do universo de Grierson( e mesmo de Flaherty já que o mesmo a usou pensando assim exprimir a essência da comunidade inuit)

Além disso, no cinema verdade acreditando que o realizador, de qualquer maneira, tinha sua marca no filme ele, assim, deveria abraçar o papel de interventor tornando-se ativo (o oposto do cinema Direto). Ele provocava, pois, situações e intervinha intensamente seja por discussões,construções de dinâmicas sociais, etc. O retrato do mundo mistura-se com o planejamento, com a construção que pode beirar a ficcional - cinza, cinza e cinza…

Evidencia-se neste o gênero do documentário tem como essência a ânsia de decifrar o mundo e este fator muito facilmente vezes se liga ideais políticos… Como resultado também dessa essência o documentário acaba historicamente tendo que lidar com a impossibilidade de expressão do “mundo tal como é” - esta questão acaba trazendo muitos frutos pro gênero, que hora ou outra tenta abarcar mais atitudes, meios e técnicas para que a intervenção na verdade retratada seja diminuída ao máximo… E hora aceita a intervenção tornando-a um fator potencialmente criativo. Outro fruto de bom gosto são os documentários (de certa forma) recentes que acabam discutindo exatamente essa posição do gênero abertamente - discutem os limites de ficção e documentário e assumem que o gênero prende-se no universo da tentativa de retrato de uma realidade consciente, paradoxalmente, da sua impotência.

Um exemplo dessa safra que arrebatou o público no Festival Latino Americano de Cinema, da mostra Contemporâneos, foi Jogo de Cena de Eduardo Coutinho.

O filme de Coutinho entra pra história do documentário ao lado de quem mexeu e remexeu com seus conceitos e significados… Ao lado da trindade documental e de movimentos tão produtivos como o Direto e o Verdade, Jogo de Cena se destaca dos filmes recentes (ou mesmo mais antigos) que discutem o gênero e ajuda o Documentário dar novo passo - a discussão dos limites acinzentados e a captação do real que tanto foram presentes no desenvolver dessa história se consolidam aqui em um filme que simplesmente não se tem nada a acrescentar… E isso é difícil.

Vale acrescentar, devido ao talento e a certeza de configurar um marco no documentário contemporâneo, um comentário estendido sobre o filme.

Jogo de Cena discute a contaminação recíproca dos gêneros mencionados brilhantemente. Uma série de mulheres é entrevistada por Coutinho e contam as histórias de suas vidas - a questão familiar, escolar, sexual… As histórias em si, essa grande carga emocional, já são interessantíssimas. Mas, então, atrizes interpretam essas entrevistas - assim temos contato tanto com a versão da atriz, a encenada, como a “verídica”.

Antes da própria confusão entre o que seria interpretação ou não, é interessante observar que Coutinho ainda mostra em tela o processo de “entrar na personagem” e as dificuldades de algumas atrizes - aquelas que a gente já conhece, em especial. Por meio disso, discute-se a atividade do ator e o quanto que ele tenta refletir a pessoa quem interpreta e acaba também refletindo a si. Fica evidente que os atores não se desvencilham de suas essências - tem entrevista em que a mulher “original” conta uma história trágica sem chorar enquanto a atriz, por mais que tente, não consegue interpretá-la deste modo… Quem interpreta, logo, mostra-se também, inevitavelmente - é ficção e documentário de novo abraçando-se.

No entanto, o ápice da obra é a confusão deliciosa sentida pelo espectador. Não se sabe mais, muitas vezes, quem seria a atriz e quem seria a entrevistada “real” - essas palavras nessa discussão são tão perigosas… Nessa confusão, que entra a questão central sobre a tentativa de expressão da realidade - ela mesma não é identificável pelo espectador, ela se confunde com o forjado e o forjado se confunde com outra realidade, a realidade do ator. É uma maravilha…

É…Por enquanto nada a acrescentar, é um filme-ápice de uma visão moderna… Até que novidades se mostrem a novos (ou velhos) realizadores e esses acreditem que poderão, “até que enfim”, mostrar o Mundo…E essa crença cair por terra novamente deixando outros frutos para a trajetória do documentário…

Suzana Altero é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)




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